19. Da multimodalidade das rezas contra o mau-olhado: covariações de texto e gesto

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Isabel Galhano [1] & Mariana Gomes [2]

[1] Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto

[2] Centro de Linguística da Universidade de Lisboa

Associação iGesto – Investigação do Gesto

 

Tradicionalmente, a investigação da literatura oral tem sido feita a partir do registo áudio ou de transcrições de textos orais. Com base na análise multimodal de um exemplo de benzedura, texto do género lírico mágico-religioso, pretende-se salientar a importância das várias modalidades de comunicação no contexto de transmissão verbal e, consequentemente, a necessidade do seu registo em formato vídeo, do seu estudo multimodal e da criação de um arquivo digital. Para isso, será analisado um exemplo de rezas contra o mau olhado, ou seja, um texto do género mágico-religioso.

A multimodalidade na comunicação: o composto gesto-fala

O entendimento da comunicação, mais concretamente, da interação face a face como sendo um fenómeno multimodal está presente nas várias vertentes de investigação das ciências sociais e humanas, sobretudo na linguística pragmática, etnolinguística, psicolinguística e neurociências. Estudos da área dos Estudos do Gesto (www.isgs.com) têm vindo a comprovar que fala e gesto funcionam em conjunto como diferentes meios que se coordenam na expressão de ideias, partilhando o mesmo sistema conceptual subjacente). Este pressuposto implica que o estudo completo e exaustivo da oralidade em qualquer tipo de evento comunicativo exige a consideração não só da fala, mas também dos movimentos do corpo coverbais, ou seja, das diferentes modalidades cinésicas envolvidas no processo de enunciação. Outro aspeto a considerar na oralidade é que a interacção face a face é uma “construção” com um dinâmica própria, cujo desenvolvimento é condicionado por todo o contexto comunicativo: não só pelas intenções comunicativas dos participantes e pela relação que estes mantêm entre si – que, por sua vez abrange atitudes, sensibilidade interpessoal, expetativas, pressuposições, valores individuais e coletivos e conhecimentos compartilhados sobre o mundo -, mas também pelo local e o momento da sua realização. Ou seja, género, função e características do texto produzido são condicionados por todos os fatores contextuais. Impõem-se assim expectativas relativamente ao que vai ser dito e feito pelo falante, a que tipo de destinatário ele se dirige e o conhecimento que este tem sobre outros eventos comunicativos do mesmo tipo. Todos estes aspetos justificam a necessidade de estudar a literatura oral com base no registo vídeo, recorrendo a uma metodologia de análise que disponibilize tanto fundamentos teóricos da literatura oral, como da linguística de texto e da vertente linguística dos estudos do gesto.

Textos de âmbito mágico-religioso ou textos mágico-religiosos

Das práticas mágico-religiosas, destacamos as práticas de cura. São reconhecidas como tal pelos seus intervenientes: os que as executam e os que assistem e/ou usam (utentes). São normalmente realizadas por um praticante especialista e prestigiado dentro da comunidade em que está integrado. As práticas de cura são compostas por várias partes, caracterizadas por uma forte ritualização de natureza religiosa e mítica. O conjunto de todos os elementos constitui uma unidade de significado simbólico, de tal forma que a sua execução é do domínio protocolar, isto é, está sujeita a normas reguladoras, como é típico das atividades cerimoniosas. Nesse sentido, a sua eficácia depende do cumprimento de uma estrutura (mais ou menos fixa), ou seja, à execução de todas as partes constituintes desta unidade de significado. Embora nem sempre exista consenso na academia quanto às partes que compõem o ritual e a ritualização, a grande maioria dos estudiosos tem distinguido três características típicas centrais: formalidade, fixidez e repetição Numa perspectiva linguístico-pragmática, o texto enunciado nestas práticas mágico-religiosas tem um carácter performativo, ou seja, são textos cuja enunciação implica a realização da ação que explicitam devendo, por isso, ser estudados na sua relação com as ações não-linguísticas: gestos convencionalizados e manipulação de objetos.

Benzeduras

As benzeduras são um tipo específico de composições mágico-religiosas. Funcionam como um meio de cura de um mal que pode estar presente, tanto no animal como no ser humano. Assemelham-se a outras práticas de cura ritualizadas como os exorcismos ou os ensalmos na medida em que têm o objetivo específico de alterar a realidade. Ou seja, de “atuar sobre a realidade, com base no poder da palavra” (Pinto-Correia, 1996: 66). Há benzeduras para todas as doenças, hoje mais ligadas à cura pela medicina institucional, desde males físicos – como inflamação nos olhos, o cocho ou a ciática – até aos males menos físicos, tais como o mal de inveja ou o mau-olhado). Tradicionalizada ao longo dos tempos, esta prática associa-se normalmente a um contexto rural (sendo justificada pela falta de recursos medicinais nas zonas afastadas dos centros urbanos), onde são um método de cura prestigiado, credível para os seus praticantes e os seus utentes. Atendendo a que são praticadas por mulheres e herdadas de mulher para mulher, as benzeduras são elementos importantes na criação de “dinastias familiares” (Lopes 2016:181).

A sua modalidade linguística já tem sido alvo de estudo e descrita como sendo constituída por repetições de palavras, de frases, por invocações e por séries enumerativas No entanto, sendo o gesto um meio de execução indispensável nesta prática mágico-religiosa, não só no manuseamento dos objetos e materiais usados nesta prática, mas também na execução de movimentos simbólicos e como instrumento de marcação rítmica correlacionado com a fala, é indispensável ser considerado nestes estudos. Levantam-se assim questões sobre a variabilidade ou invariabilidade das características das benzeduras de idênticas funções conforme a benzedeira ou a região do país. Para isso, o estudo tanto das características formais do gesto – configuração da mão e dos dedos -, como das propriedades do movimento nas diferentes partes do texto – orientação do golpe e velocidade de execução, assim como das palavras que compõem o texto e a métrica rítmica merecem toda a atenção. As questões que se prendem com a relação entre gesto e texto falado e o fenómeno da repetição serão exemplificados através da análise do gesto e texto de uma benzedura contra o mau-olhado. Por razões de espaço, não podemos dar ênfase a variabilidade.

Uma benzedura

A benzedura que se segue – exemplo de práticas ritualísticas e de cura em particular – tem a função específica de combater o mau-olhado:

https://vimeo.com/110808529

Ref: Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, por Tiago Pereira, gravado em Monsanto, Idanha a Nova, Castelo Branco, a 2 de Novembro de 2014, nome da informante: Amélia Mendonça.

TRANSCRIÇÃO ORTOGRÁFICA

TRANSCRIÇÃO PROSÓDICA[3]

GESTO

1

Em nome do Pai,

em nome do pai:::?

MD [4] na testa

2

do Filho,

 do filho;

MD no peito

3

do Espírito

do espírito

MD ombro esq

4

Santo.

santo.

 MD ombro dir

5

Amén.

amén.

mantém pos.

6

 ((inspira))

 

7

 e depois,

 

8

Tiago!

 <<f>tiago.>

 1 = frente-trás

9

Deus te deu,

deus te deu.     

 2 = dir – esq

10

Deus te criou,

deus te criou.

 3 = frente-trás

11

Deus te livre

deus te livre.

 4 = dir – esq

12

de quem mal olhou.

de quem mal olhou.

 5 = frente-trás

13

As pessoas

as pessoas-

 6 = dir – esq

14

da Santíssima Trindade

da santíssima trindade;

 7 = frente-trás

15

são três.

são três.

 8 = dir – esq

16

Assim como Elas querem

assim como elas querem;

 9 = frente-trás

17

e podem,

e podem.

10 = dir – esq

18

que este mal

que este mal;

11 = frente-trás

19

pra lá volte.

pra lá volte.

12 = dir – esq

20

Três to deram,

três to DEram,

13 = frente-trás

21

três to tirarão:

três to tirarão.

14 = dir – esq

22

São Pedro

são pedro

15 = frente-trás

23

e São Paulo

e são paulo;

16 = dir – esq

24

e o Apóstolo São João.

eo apóstolo são joão.

17 = frente-trás

25

Vai-te mal

VAI-te mal.

18 = dir – esq

26

prás águas salgadas,

prás águas salgadas,

19 = frente-trás

27

que eu não sou que o atalho

que eu não sou que o atalho;

20 = dir – esq

28

é a virtude

é a virtude

21 = frente-trás

29

de Nosso Senhor Jesus Cristo,

de nosso senhor jesus cristo;

22 = dir – esq

30

Amén.

amén.

23 = frente-trás

Descrição de texto e gesto

Os versos estão sincronizados com gestos de cruz, cujos golpes desenham percursos no plano horizontal, alternadamente ao longo do eixo distal (frente-trás) e do eixo lateral (esquerda-direita). Cada um destes movimentos corresponde a uma unidade entoacional, composta por elementos linguísticos que representam partes de sintagmas (cf. 24), sintagmas (cf. 26) ou frases completas (cf. 21). Não se verifica nenhuma sincronização entre o climax do golpe do gesto e algum elemento linguístico específico, parecendo assim que o que mais importa é a quantidade de sílabas que se podem encaixar numa determinada unidade de tempo. A configuração da mão mantém-se invariável ao longo do texto: mão aberta, palma vertical (MAPV). O texto é composto por uma primeira parte (em que a benzedeira se benze) e uma segunda parte, constituída por duas repetições de três grupos de versos. O fecho contém um único elemento (cf. 30).

 

 

 

 

 

(8) <<f>tiago.>

 

 

 

 

 

(9) Deus te deu.

 

Comentário

Como em muitos outros rituais, a verbalização dos versos e a execução dos gestos não só estão nitidamente correlacionados, mas também constituem um bloco multimodal: nem a fala funciona sem os gestos, nem vice-versa. Pode-se aqui falar de uma corporização do ritual. No ponto de vista formal, as benzeduras caracterizam-se por terem uma estrutura repetitiva. Constata-se que a estrutura repetitiva dos diferentes grupos sintáticos (palavras, sintagmas, ou frases paralelas) é reforçada não só, a nível auditivo, pelas suas propriedades prosódicas (repetições de unidades entoacionais), mas também, a nível visual, por gestos coverbais, cujas caraterísticas cinésicas revelam uma sincronização precisa com as unidades entoacionais do texto falado. O aspeto repetitivodas unidades entoacionais e dos elementos lexicais é ainda reforçado pela execução de gestos com características formais muito idênticas no que diz respeito a orientação do golpe do gesto, ou de conjuntos de dois golpes seguidos – por exemplo, no plano horizontal, da frente para trás e da esquerda para a direita; ou no plano vertical, de cima para baixo e da esquerda para a direita – , assim como da configuração da mão – por exemplo, sempre mão aberta, palma para baixo; ou sempre mão aberta, palma vertical, ou outras formas. Ou seja, o efeito repetitivo parece ser importante, na medida em que é conseguido por meio de três modalidades: através da linguagem verbal (ou fala) (por meio de paralelismos sintáticos e de repetições de palavras e de frases), através da prosódia (por meio de repetições de unidades entoacionais com as mesmas caraterísticas prosódicas) e, por último, através da modalidade cinésica (por meio de repetições de gestos idênticos). Confrontado com outros, este exemplo demonstra ainda a existência de variações em benzeduras contra o mau-olhado, tanto a nível de texto, como na configuração da mão na execução do gesto. Seria por isso importante recolher mais exemplos, de forma a procurar as regularidades marcantes neste tipo de prática, assim como as diferentes formas de variação.

Esperamos ter comprovado a necessidade de aplicar uma metodologia que possa dar conta de fala, gesto e prosódia e contexto comunicativo no estudo não só deste tipo de texto, mas de todos os géneros de literatura oral. Isso obriga à recolha e arquivo de versões o mais completas possível, que abrangem todo o contexto comunicativo. Considera-se ainda importante a criação de arquivo digital, elaborado de acordo com princípios consistentes. As metodologias desenvolvidas no âmbito das Humanidades Digitais e da Linguística Documental podem viabilizar o registo, o estudo e a análise dos conteúdos textuais orais Sugere-se aqui a metodologia seguida na documentação linguística, uma sub-área da linguística aplicada que tem em vista o registo duradouro e bem documentado de dados linguísticos). Desta forma, garante-se que os registos documentados possam ser utilizados para diferentes fins, permitindo ainda um melhor aproveitamento dos recursos vídeo e áudio.

 

Bibliografia

Lopes, Aurélio. 2016. Ritual, natura e magia. Lisboa: Apenas Livros.

Pinto Correia, João David. 1993. “Os géneros da literatura oral tradicional: contributo para a sua classificação.” Revista Internacional de Língua Portuguesa, no. 9: 63–69.

 


[3] Transcrição prosódica de acordo com o sistema GAT (https://www.mediensprache.net/de/

medienanalyse/ into-Correia com o sistema GAT.T.transcription/gat/gat.pdf).

[4] MD = mão direita.